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A história de uma Serva

A “História de uma Serva” é uma narrativa magistral escrita por Margaret Atwood. Trata-se de uma distopia, com reminiscências Orwellinas, que descreve um lugar, Gileade, onde as normas estabelecidas subjugam implacavelmente as mulheres.


Gileade representa uma sociedade assente numa ideologia estruturada em torno de normativas militares e valores cristãos extremamente rígidos. A cúpula do poder é ocupada apenas por homens, estando as suas mulheres diminuídas, voluntariamente, dos seus direitos. Esta sociedade enfrenta, contudo, uma questão existencial: as mulheres dos homens do poder, os fundadores do regime, são inférteis, pelo que a continuidade da sociedade está sob ameaça.

Como forma de resolver o problema, mulheres férteis são capturadas e feitas servas com o único propósito de gerarem filhos para a elite estéril. Esta é, aliás, a sua única função nesta sociedade. As mulheres, no romance de Atwood, ocupam apenas três tipos de funções: serviçal, reprodutora e recreativa.


A invocação da “História de uma Serva” é, evidentemente, uma provocação. Gileade não é em nada semelhante à nossa sociedade, ao dia de hoje. Tem, contudo, o mérito de nos fazer questionar: poderia acontecer aqui? Esta simples interrogação permite-nos levantar os alertas necessários para nos agitarmos quando estivermos a dirigir-nos para esse lugar sombrio.


Apesar de vivermos numa sociedade onde as mulheres são cada vez mais respeitadas, a igualdade de género não é, ainda, uma realidade. Inquestionavelmente as mulheres e os homens em Portugal não têm as mesmas oportunidades e nem são tratados da mesma forma. A realidade continua a fornecer-nos evidências de que existem disparidades persistentes e que, se nada for feito, não irão desvanecer-se nas próximas décadas.

O Word Economic Forum, no seu Global Gender Gap Report 2022, indica que serão necessários 132 anos para que a paridade entre sexos seja completamente atingida, a nível global. Na Europa este hiato já é de “apenas”60 anos.


O mesmo relatório coloca Portugal no lugar nº 29, com um hiato entre homens e mulheres de 76,6% - os 100% significam a paridade total. Como referência, o país do mundo com o menor hiato é a Islândia, com 90,8%, sendo mesmo o único país do mundo que encurtou em mais de 90%.


Encurtar o hiato é tão relevante que faz mesmo parte dos Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidades. Este objetivo pretende acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres em todos os lugares do mundo, e garantir a participação plena e efetiva das mulheres na sociedade, com igualdade de oportunidades.


O hiato é fruto dos resultados obtidos em vários subdomínios: saúde, educação, empoderamento económico e participação cívica e política. Consoante o lugar do mundo que observemos, estes subdomínios ganham proporções diferentes, e podem ser causa e consequência da persistência do hiato. Um exemplo: menores níveis de educação conduzem a empregos mais precários e mal pagos, que só permitem viver em locais mais remotos ou expostos a agentes nocivos, aumentando os fatores de risco para a saúde. Viver com privações aumenta também os níveis de stress e diminui o exercício da cidadania. Esta é uma situação comum, vivida por muitas mulheres no mundo (também em Portugal), que é agravada quando vivem sozinhas com filhos a cargo.


A esperança média de vida à nascença em Portugal é de 81,1 anos. As mulheres portuguesas têm uma esperança de vida à nascença cerca de 6 anos superior à de um homem (84,1 anos em oposição a 78 anos), no entanto a sua esperança de anos de vida saudável à nascença (healthy life years) é mais reduzida, são menos 2 anos. De acordo com os dados fornecidos pela Eurostat (2020), as mulheres portuguesas são mesmo das que vivem menos anos saudáveis (58,7), bastante abaixo da média da EU (64,5).

Podemos começar por perguntar-nos porque é que as mulheres têm uma maior esperança de vida à nascença, mas esta é uma questão para a qual a ciência ainda não tem respostas definitivas. Crê-se que tal possa estar relacionado com o facto de uma dupla de cromossomas iguais (XX) ser uma combinação mais vantajosa dos que dois cromossomas diferentes (XY).


Sabe-se também que as hormonas têm um papel protetor nos riscos cardiovasculares nas mulheres. Mas devemos também interrogar-nos porque é que, com mais anos de vida, as mulheres têm uma expectativa de menos anos de vida saudável? Talvez a resposta resida nas condições a que são sujeitas ao longo da vida…


Os fatores socioeconómicos têm um reflexo direto na saúde pelo que, existindo disparidades nestes fatores, se produzem resultados diferentes em saúde. A testemunhá-lo estão as diferenças observáveis na esperança de vida de cidadãos com diferentes níveis de instrução. São, por isso, designados de Determinantes Sociais da Saúde.

Agir nos determinantes sociais da saúde é um contributo para encurtar o hiato. Ao proporcionar igualdade de oportunidades estamos a melhorar as condições de vida e a aumentar a esperança de anos de vida saudável, pelo que passaremos a ter mais pessoas a viver melhor durante uma parte cada vez mais significativa da sua vida. Significa também um alívio nos encargos para o setor da saúde e pessoas ativas e interventivas na sociedade.

Encurtar o hiato é também um desígnio liberal, um sistema cujo maior benefício é, nas palavras de Fukuyama, proporcionar a cada cidadão o potencial de viver uma vida plena, baseada na justiça e a igualdade de oportunidades.

Mónica Correia

Doutoranda em Comunicação e Saúde



1 Comment


claudinomj
Mar 29, 2023

Excelente artigo!

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